Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente e, mais especificamente com a criação dos conselhos tutelares nele previstos, passaram a surgir questionamentos acerca da necessidade e da própria legalidade da existência da figura do "comissário de menores", cuja atuação era expressamente disciplinada no art.7º e par. único da Lei nº 6.697/79, o revogado "Código de Menores".
Muito embora a Lei nº 8.069/90 de fato não contemple disposição semelhante, a presença do "comissário de menores", agora chamado de “comissário de vigilância” 1 ou “agente de proteção 2 da infância e juventude” 3, foi expressamente prevista pelo legislador estatutário, como fica patente da leitura do art.194, caput do referido Diploma Legal, que estabelece a possibilidade de o procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente tenha início por "...auto de infração elaborado por SERVIDOR EFETIVO ou VOLUNTÁRIO CREDENCIADO..." (verbis - grifamos), que vem a ser justamente o "agente de proteção" acima referido.
Diante da disposição estatutária acima transcrita, é deveras evidente que a figura do "agente de proteção" não foi banida pela nova legislação, que dentro de seu espírito democrático e descentralizador apenas preferiu deixar a regulamentação da matéria para os demais entes federados 4, que poderão prever sua existência e disciplinar melhor suas atribuições, de acordo com as particularidades locais.
No estado do Paraná, as atribuições dos "agentes de proteção", bem como sua forma de investidura, posse e outras disposições estão devidamente disciplinadas no Código de Divisão e Organização Judiciária (Lei Estadual nº 14.277, de 30/12/2003), mais especificamente em seus arts.123, inciso V, 148, incisos I a IX e 149. Existem ainda referências aos "agentes de proteção" em diversas passagens do Capítulo III do referido Código de Divisão e Organização Judiciária e no Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Paraná (Provimento nº 47/2003), que em seu item 8.1.2 dispõe que "o registro de termo de compromisso dos comissários deverá se lavrado junto ao livro próprio da direção do fórum" (verbis).
A grosso modo, e tomando-se por base o rol de atribuições contido no citado art.148 da Lei Estadual nº 14.277/20035, pode-se dizer que o "agente de proteção" atua como uma espécie de longa manus do Juiz da Infância e Juventude, exercendo basicamente a função de fiscalizar o cumprimento das normas de proteção à criança e ao adolescente existentes (dentre elas as portarias judiciais expedidas na forma do disposto no art.149 da Lei nº 8.069/90), e ainda realizar diligências ou outras atividades consoante determinação da autoridade judiciária, à qual o agente é subordinado.
A subsistência da figura do "agente de proteção" é praticamente um consenso junto à doutrina, sendo que a respeito do tema PAULO LÚCIO NOGUEIRA com muita propriedade afirma que "o Juizado deve contar com um corpo efetivo de comissários (...) para o exercício constante da fiscalização, pois, se esta não for feita com freqüência, não haverá cumprimento das disposições estatutárias, bem como das portarias baixadas, o que tornará o serviço desacreditado" (In O Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Saraiva. São Paulo, 1991, pág.221).
Já WILSON DONIZETI LIBERATI ressalta que "o 'comissário' ou 'agente de proteção', servidor efetivo ou voluntário credenciado é, por deliberação exclusiva do juiz da infância e juventude, credenciado para desempenhar tarefas que lhe são atribuídas através da portaria judicial. Nela serão estabelecidos os requisitos para o exercício do cargo, como a gratuidade, idoneidade, atribuição para exercer o serviço de fiscalização, além, é claro, da confiança do juiz.
"Embora não esteja expresso no Estatuto, o Poder Judiciário poderá manter um quadro de voluntários que servirá de 'suporte' para as funções administrativas do Juizado e as concernentes à fiscalização" (In Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª Edição. Malheiros Editores. São Paulo, 1995, pág.173).
Claro está, portanto, que os "agentes de proteção da infância e juventude", ao contrário do que pensam alguns, não apenas ainda têm sua atuação contemplada pelo ordenamento jurídico pátrio, como esta é agora, mais do que nunca, fundamental para a plena eficácia do sistema de garantias idealizado pelo legislador estatutário, pois através dele o Juízo da Infância e Juventude se fará onipresente para impedir e/ou reprimir ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes, no mais puro espírito da proteção integral preconizada pelo art.227, caput da Constituição Federal.
Também é importante registrar que a criação e implantação do Conselho Tutelar no município, apesar do disposto no art.262 da Lei nº 8.069/90 (a contrariu sensu), não deve conduzir à "dispensa", pela autoridade judiciária, dos "agentes de proteção" já credenciados e em atividade, pois seus serviços continuarão sendo necessários para o adequado funcionamento do Juízo da Infância e Juventude.
Com efeito, embora pareça despicienda diante da argumentação anteriormente efetuada, a observação supra tem sua razão de ser na constatação de que, em várias comarcas, após a criação e implantação do Conselho Tutelar: a) houve a "extinção" do corpo de "agentes de proteção" nomeados pelo Juizado da Infância e Juventude e b) os Juízes da Infância e Juventude passaram a utilizar o Conselho Tutelar para o desempenho de funções típicas dos "agentes de proteção", e o que é pior, em muitos casos considerando aqueles como seus subordinados.
Ora, "agentes de proteção" e conselheiros tutelares exercem atribuições distintas (embora em alguns casos assemelhadas e com o objetivo comum de proteção a crianças e adolescentes), devendo ambas figuras coexistir e atuar de forma harmônica e absolutamente independente.
Como vimos, os "agentes de proteção" são uma espécie de longa manus da autoridade judiciária, agindo nos limites do disposto no art.148 do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Paraná (Lei Estadual nº 12.277/03) e do que mais constar na portaria judicial que os nomeie6, valendo a observação feita por ADRIANO MARREY, citado por WILSON DONIZETI LIBERATI: "o comissário de menores é representante do juiz de menores, especializado ou não, nas comarcas. É pessoa de confiança, que irá fiscalizar o cumprimento das portarias e ordens de serviço relacionadas com as medidas de prevenção e proteção aos menores. A relevância das funções não equipara o comissário à autoridade, sob o ponto de vista de que possa ser arbitrário nas suas ações, muito menos lhe concede poderes para efetuar prisões, fechar estabelecimentos, encerrar espetáculos públicos, mesmo que estes não estejam funcionando nos moldes da legislação vigente, ou não tenham alvará fornecido pela Vara de Menores" (In op. cit. pág.129).
Assim sendo, temos que o "agente de proteção" exerce suas atribuições de forma vinculada e diretamente subordinada à autoridade judiciária que o nomeia ou, no caso do servidor efetivo, perante a qual oficia, tendo no entanto atribuições e poderes bastante limitados.
Já o Conselho Tutelar, por expressa definição legal7, é órgão autônomo, não sendo portanto de qualquer modo subordinado ao Juiz da Infância e Juventude ou a qualquer outra autoridade no âmbito do município, tendo dentro de sua esfera de atribuições amplos poderes, como melhor veremos a seguir. A investidura dos conselheiros tutelares se dá após processo de escolha conduzido pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, passando os 05 (cinco) mais votados a exercer mandato de 03 (três) anos, que somente perderão em hipóteses restritas, de acordo com a legislação municipal específica.
Os conselheiros tutelares exercem atribuições definidas em Lei Federal 8, gozando assim de parcela da soberania estatal e portanto não necessitando de ordem judicial para fazer valer suas deliberações, cujo descumprimento, além de caracterizar a infração administrativa prevista no art.249 da Lei nº 8.069/90, importa na prática, em tese, do crime de desobediência tipificado no art.330 do Código Penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em várias de suas passagens9, equiparou o Conselho Tutelar à autoridade judiciária, que sob nenhum pretexto ou circunstância pode valer-se dos serviços daquele órgão como se seu subordinado fosse10, sendo que caso queira a colaboração do órgão para a realização de determinada atividade, terá de solicitar a intervenção respectiva, em requerimento que passará pelo crivo de sua plenária antes de ser ou não acatado.
Vale observar que tanto o Conselho Tutelar quanto o Juiz da Infância e Juventude são autoridades públicas, com poderes e atribuições assemelhados (e em alguns casos idênticos). Como não há hierarquia entre qualquer delas, eventual tentativa da autoridade judiciária em colocar o Conselho Tutelar em posição de inferioridade será indevida, ilegítima e, dependendo da situação, poderá importar em abuso de poder passível de sanção administrativa (via Corregedoria da Justiça) e mesmo penal.
As solicitações da autoridade judiciária, embora devam ser objeto de consideração e, sempre que possível, de acatamento por parte do Conselho Tutelar (pois todos lutam pela mesma causa: o bem estar de crianças e adolescentes, que para ser alcançado deverá contar com a participação e empenho de todos), devem ser devidamente analisadas em conjunto com os demais casos atendidos pelo órgão, a quem compete estabelecer os critérios de conveniência, oportunidade e prioridade para atendimento.
A prática tem demonstrado que, em muitos casos, o Juízo da Infância e Juventude utiliza o Conselho Tutelar para realização de "estudos sociais" e outras diligências tendentes a instruir feitos em andamento.
Solicitações dessa natureza não se justificam, pois em primeiro lugar o Conselho Tutelar, via de regra, não é composto por pessoas tecnicamente habilitadas a realizar estudos dessa natureza, tendo assim pouca ou nenhuma valia o "parecer" apresentado, e em segundo porque o cumprimento dessas atividades absolutamente atípicas e totalmente fora do âmbito de suas atribuições (e/ou capacidade de atuação – sob o ponto de vista técnico), faz com que o Conselho Tutelar não possa desempenhar a contento seu relevante mister, causando assim prejuízos a toda população.
Importante não perder de vista que, longe de realizar diretamente estudos sociais e/ou outras diligências que demandem conhecimento técnico, o Conselho Tutelar deve contar com uma equipe interprofissional permanentemente à sua disposição11, ou então poderá requisitar ao município a intervenção de servidores habilitados a fazê-lo, ex vi do disposto no art.136, inciso III, alínea "a" da Lei nº 8.069/90.
Claro está, portanto, que para os objetivos acima mencionados, não deve a autoridade judiciária socorrer-se do Conselho Tutelar (salvo para solicitar a disponibilização de equipe multidisciplinar que este tenha à sua disposição ou para que o órgão, usando da prerrogativa prevista no art.136, inciso III, alínea "a" da Lei nº 8.069/90, requisite do município o serviço público respectivo), mas sim buscar a intervenção de pessoas habilitadas a elaborar pareceres técnicos idôneos, que realmente atendam aos fins a que se destinam, pois apenas a título de exemplo, de nada valerá um "estudo social" realizado por um leigo.
Nos demais casos, salta também aos olhos a inconveniência (para dizer o menos) da utilização do Conselho Tutelar pela autoridade judiciária, ainda que em regime de estrita colaboração, para realização de diligências rotineiras tão necessárias para instruir feitos que se encontram em tramitação junto à Vara da Infância e Juventude12, pois se estas não demandam conhecimento técnico, poderão perfeitamente ser realizadas por outras pessoas (inclusive e especialmente pelos "agentes de proteção" nomeados), sem a necessidade de comprometer as demais atividades do órgão tutelar, que se agir como desejado pela legislação, de forma preventiva e itinerante, por certo terá considerável demanda a atender no seu cotidiano.
A exposição supra deixa clara a necessidade da criação e/ou manutenção, em cada município, de um corpo de "agentes de proteção da infância e juventude", composto de um número razoável de voluntários da confiança do Juiz da Infância e Juventude, que ficarão à sua disposição para a realização das diligências que não demandam conhecimento técnico e outras relacionadas na citada Lei Estadual nº 14.277/03 (e alterações posteriores), devendo tais agentes procurar atuar sempre em regime de colaboração com o Conselho Tutelar e demais órgãos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes existentes no município.
Em não havendo um serviço próprio diretamente subordinado ao Juizado, para os "estudos sociais" e outras diligências onde o conhecimento técnico se faz necessário, deverá a autoridade judiciária buscar a intervenção de servidores públicos que tenham habilitação específica nas áreas respectivas, ou então socorrer-se das equipes do Serviço Auxiliar da Infância (SAI) lotadas nas comarcas contíguas, tal qual previsto no item 8.8.10 do Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Paraná (Provimento nº 47/2003)13.
Apenas assim se estará garantindo a correta aplicação da lei, com a utilização de todas as estruturas idealizadas para o adequado funcionamento do sistema de garantias preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com o que todos, em especial a população infanto-juvenil, serão beneficiados.
Devemos sempre lembrar que, com a criação e implantação do Conselho Tutelar, o município passa a contar com um órgão especializado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que em boa parte dos casos irá substituir por completo a atuação da autoridade judiciária, à qual caberá, em tomando conhecimento da ocorrência de alguma das situações previstas no art.98 da Lei nº 8.069/90 que demandem a aplicação de medidas de proteção a crianças, adolescentes e pais ou responsável, limitar-se encaminhar o caso para atendimento pelo referido Conselho14, que por sua vez deverá tomar as providências necessárias para resolver o problema.
Ao arremate, resta apenas dizer que a atuação dos órgãos acima relacionados (notadamente Conselho Tutelar, Juiz da Infância e Juventude, e "agentes de proteção"), pode ser complementada por outros órgãos e entidades existentes no município15, sendo que para evitar lacunas, antagonismos e paralelismos, todos devem se reunir periodicamente a fim de avaliar a sistemática de atendimento adotada, aprimorando-a cada vez mais, sendo certo que o foro adequado para tais reuniões não é outro senão o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, ao qual poderão ser formuladas diretamente reivindicações visando a melhora na política de atendimento para a área infanto-juvenil, que como sabemos este órgão tem a missão constitucional de elaborar.
Reafirmando o que já dissemos em manifestações anteriores, devemos sempre lutar para uma melhor estruturação dos municípios, de modo que estes possam cumprir a contento a diretriz contida no art.88, inciso I da Lei nº 8.069/90 com a mais absoluta prioridade exigida pelo art.227, caput da Constituição Federal.
MURILLO JOSÉ DIGIÁCOMO
Promotor de Justiça
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